quinta-feira, 27 de março de 2014

Patrimônio cultural imaterial e a capoeira: identidade, salvaguarda e os desdobramentos da política cultural em Campinas.

Resumo

Este ensaio apresenta reflexões sobre o patrimônio cultural imaterial a partir das perspectivas de identidade e salvaguarda e enfatiza o importante papel dos detentores nos processos de apropriação e implementação da política para o patrimônio cultural. Aborda inicialmente sobre a importância do olhar antropológico de cultura, da compreensão das referências culturais para o campo do patrimônio, dos instrumentos jurídicos que institui o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e os primeiros registros de patrimônio imaterial no IPHAN. Na parte central o texto apresenta o papel da salvaguarda a partir dos registros do Samba de Roda, do Jongo e da Capoeira, finalizando com o desdobramento da política nacional nas ações de articulação e mobilização para a implementação da Salvaguarda da Capoeira no âmbito do Programa Municipal de Patrimônio Imaterial no município de Campinas e considerações finais sobre o tema.

Palavras chave: patrimônio imaterial, capoeira, salvaguarda, identidade.

Tava lá em casa sem pensar, sem imaginar...

O patrimônio está alocado em diferentes campos da sociedade, o que possibilita diversas compreensões e perspectivas de ação e interação com o que se considera como patrimônio cultural. Mais recentemente no campo das ações políticas culturais, situam-se amplos debates que envolvem questões para os diferentes agentes que operam entre mecanismos e dispositivos ligados ao patrimônio, sejam de natureza conceitual e/ou procedimental em relação aos bens culturais e a noção de patrimônio na relação com estes bens. No Brasil, durante extenso período houve um único instrumento legal de proteção do patrimônio cultural, o tombamento. Este instrumento considerava como patrimônio cultural somente as edificações e monumentos, entre outros, o patrimônio material. Qual identidade estaria representada por aquela visão de um patrimônio calcado na ideia de representação de uma (possível) identidade nacional? Se apenas os intelectuais ocupavam os espaços de poder de decisão e nestes estavam contidos os símbolos e referências para elencar o que deveria ser preservado como patrimônio cultural, qual “cultura” se reconhecia como legítima para representar o patrimônio do Brasil? A partir do conceito antropológico de cultura, ocorre o reflexo mais significativo para mudanças tanto no vocabulário das políticas culturais, quanto da noção de “referência cultural” no âmbito das discussões para implementação das políticas (FONSECA, 2000; ABREU, 2006).

Simbora é hora, é hora... Patrimônio, identidade e salvaguarda

A Constituição Federal de 1988, amplia a definição de patrimônio cultural e no artigo 216 encontramos os saberes tradicionais, os lugares, expressões e as celebrações religiosas do povo como patrimônio de natureza imaterial. A partir do decreto 3551/2000, ocorre a realização dos primeiros registros de bens imateriais pelo IPHAN: Ofício das Paneleiras de Goiabeiras do Espírito Santo e das Artes Gráficas Wajãpi do Amapá, ocorridos em 2004 (IPHAN, 2010). O patrimônio passa a existir a partir do ser, do que o povo considera como representativo de suas identidades, memória e cultura. “Ou seja, são os valores, os significados atribuídos pelas pessoas a objetos, lugares ou práticas culturais que os tornam patrimônio de uma coletividade (ou patrimônio coletivo)”, Iphan (2012, p. 14), atribuindo às referências culturais o que podemos compreender como sendo a coluna vertebral desta nova realidade. Sendo assim, qual é o papel da salvaguarda na política do patrimônio cultural?

Se entendermos que na salvaguarda estão contidas as formas e mecanismos de proteção do patrimônio cultural, assegurados pelo instrumento jurídico, neste caso o registro, a salvaguarda tem papel fundamental para que a política se consolide e será o conjunto de ações articuladas entre difusão, comunicação, documentação, fomento e educação patrimonial, postas (e executadas) em um plano. O plano de salvaguarda do bem dever conter recomendações para que ele seja protegido, contemplando a visão dos detentores. Os casos do Samba de Roda, Ofício das baianas de acarajé, e o Jongo, já se encontram em processo de avaliação tanto dos planos de salvaguarda, quanto da avaliação da própria titulação de patrimônio cultural, que ocorre após dez anos de registro. a Capoeira, por meio do reconhecimento da Roda de Capoeira como “Forma de expressão” e do Ofício dos Mestres “Modo de Saber”, até o momento não avançou na implementação de um plano de salvaguarda fomentado pelo IPHAN e por isso, nos ocorre a importância de compreender e dimensionar os limites de alcance da política de salvaguarda proposta pelo Governo Federal. 

Após as etapas de documentação, identificação e registro e conformando a salvaguarda como um caminho de intervenção do Estado diante as referências culturais da comunidade que a tomam como patrimônio, neste caso, a Capoeira, o que se espera da política e do Estado, por parte dos detentores? Vimos anteriormente que a “adoção” das referências culturais no âmbito das políticas do patrimônio cultural é para além de uma mudança de ordem política, abarca também o resultado das movimentações dos grupos sociais em relação a própria política. No caso da Capoeira, o Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à Capoeira, o Pró-Capoeira empreendido pelo IPHAN concretizou ações pontuais, não consolidando a etapa da salvaguarda, porém, dando início aos processos de apropriação da política de salvaguarda pelos detentores e estes, atuando na articulação de ações que envolvem políticas locais, processo educativos, aprendizados e decodificações das linguagens institucionalizadas, desencadeando espaços de mobilização para discussões acerca da salvaguarda, dos desafios e possibilidades de descentralização da política inicial que se apresentava de forma abrangente e nacional, para empreender ações locais. 

Em Campinas, desde 2010, ocorrem ações como o “Coletivo da Salvaguarda da Capoeira” que atuam na mobilização e articulação de capoeiristas para elaboração do plano de salvaguarda da Capoeira no município. O coletivo formalizou o pedido de registro da Capoeira como patrimônio imaterial da cidade de Campinas, tendo ocorrido o mesmo com o Jongo, por meio da associação de jongueiros que existe na cidade desde 2003. Ambos os coletivos, da capoeira e do jongo, articulam seus detentores com base na política nacional do IPHAN, resultando após amplas discussões entre a Secretaria Municipal de Cultura e representantes/detentores dos bens já registrados pelo IPHAN (Capoeira e Jongo), na Lei 14.701/2013, que institui o Programa Municipal do Patrimônio Imaterial (PMPI) no âmbito das ações da Coordenadoria Setorial de Patrimônio Cultura (CSPC).

A salvaguarda da Capoeira transcende as políticas de patrimônio. Pelegrini (2009) ressalta o registro da Roda de Capoeira e do Ofício dos Mestres como marco das lutas pelo reconhecimento da cultura tradicional e popular afro [grifo meu] brasileira “na medida em que a capoeira se insere num universo […] de signos da emancipação do homem negro na sociedade brasileira” (p. 31). Definir ou compreender a Capoeira como patrimônio cultural, para os detentores que se encontram no processo de apropriação do próprio conceito de patrimônio imaterial e do entendimento dos papéis a serem assumidos pelos detentores diante da política de salvaguarda, nos reforça a ideia de estarmos vivenciando ações de revindicação dos espaços de construção da memória social destas comunidades, bem como das causas e efeitos desencadeados pelos trajetos de construção e afirmação das identidades no âmbito do pertencimento simbólico dos detentores. Neste ensaio propomos uma reflexão da Capoeira como uma das manifestações da diáspora africana no Brasil, contextualizada por seus signos emblemáticos e históricos, “percorrendo do código penal1 ao patrimônio imaterial” e pressupõe novos desafios na relação dos seus detentores com o Estado e com a sociedade de forma ampla, convidando à construção epistemológica a fazer parte da reflexão sobre as implicações da apropriação política para a salvaguarda do patrimônio imaterial pelos detentores.

De acordo com o IPHAN:
O Patrimônio Cultural Imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. É apropriado por indivíduos e grupos sociais como importantes elementos de sua identidade (s/d).


Adeus, adeus, boa viagem...
Concluindo, acredito que o registro e a salvaguarda do patrimônio imaterial e ainda, a concretização de ações políticas com base nas referências culturais têm se alargado, compondo o momento atual que é significativo pois, envolve os desdobramentos da sociedade civil na participação e revindicação de uma identidade cultural que não converge com a hegemonia identitária centrada no passado, mas sim, na celebração de uma identidade dinâmica proposta por Hall: “formada e transformada continuamente às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”(2006, p.13). 
Neste sentido, para o patrimônio imaterial, os detentores atravessam campos de importância não só das especificidades do saber e das suas tradições, mas notadamente da sua participação nas etapas de documentação, registro e na elaboração do plano de salvaguarda, pois, mais do quê os modos específicos de se promover a continuidade de uma tradição, é olhar e dimensionar o campo simbólico, os sentidos e os valores de pertencimento enraizados no que se reconhece como referência cultural. Há que se identificar quais implicações estariam associadas à intervenção do Estado na afirmação da identidade e na (re) construção do pertencimento simbólico das comunidades detentores do patrimônio imaterial.

Referências:

Em 1890 a Capoeira constava no Decreto n. 487 do Código Penal da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil e trazia no capítulo XIII três artigos que qualificava criminalmente “Dos Vadios e Capoeiras”.
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ABREU, Regina. Patrimônio cultural: tensões e disputas no contexto de uma nova ordem. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2006. p. 263-285.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Referência culturais: base para novas políticas de patrimônio. In: Políticas Sociais: acompanhamento e análise. Brasília: IPEA, 2000. p 111-119.
IPHAN. Os sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois: princípios, ações e resultados da política de salvaguarda do patrimônio imaterial no Brasil 2003 – 2010. Brasília: IPHAN, 2010.
_______. Patrimônio cultural imaterial: para saber mais. Brasília: IPHAN, 2012.
_______. Sitio eletrônico do IPHAN. Patrimônio Imaterial disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=10852&retorno=paginaIphan. Consulta em 12/08/2013
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
PELEGRINI, Sandra. Patrimônio Cultural: consciência e preservação. São Paulo: Brasiliense, 2009.

Alessandra Regina Gama Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. Organizou duas edições do Seminário de Patrimônio Cultural Imaterial (2012 e 2013), atuou como Consultora no Pró-Capoeira (IPHAN, 2010); é membro de articulação do “Coletivo Salvaguarda Capoeira” desde 2010.

Ensaio acadêmico "Patrimônio cultural imaterial e a capoeira: identidade, salvaguarda e os desdobramentos da política cultural em Campinas", apresentado na II Semana Limeirense de Patrimônio Cultural. UNESP, LEPP, IPPRI, Proext, Limeira, setembro de 2013. 


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